A Morte, Aos que Sofrem

Histórias do Umbral – Mendigos da alma

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…Nunca poderia imaginar o quadro que se desenhava agora aos meus olhos. Não era bem o hospital de sangue, nem o instituto de tratamento normal da saúde orgânica. Era uma série de câmaras vastas, ligadas entre si e repletas de verdadeiros despojos humanos.

Singular vozerio pairava no ar. Gemidos, soluços, frases dolorosas pronunciadas a esmo… Rostos escaveirados, mãos esqueléticas, fácies monstruosas deixavam transparecer terrível miséria espiritual.

Tão angustiosas foram minhas primeiras impressões que procurei os recursos da prece para não fraquejar. Tobias, imperturbável, chamou velha servidora, que acudiu atenciosamente:

– Vejo poucos auxiliares – disse admirado -, que aconteceu?

– O Ministro Flácus – esclareceu a velhinha em tom respeitoso – determinou que a maioria acompanhasse os Samaritanos para os serviços de hoje, nas regiões do Umbral.

– Há que multiplicar energias – tornou ele sereno -, não temos tempo a perder.

– Irmão Tobias!… Irmão Tobias!… por caridade! – gritou um ancião, gesticulando, agarrado ao leito, à maneira de louco – estou a sufocar! Isto é mil vezes pior que a morte na Terra… Socorro! socorro! quero sair, sair!. . . quero ar, muito ar! Tobias aproximou-se, examinou-o com atenção e perguntou:

– Por que teria o Ribeiro piorado tanto?

– Experimentou uma crise de grandes proporções – explicou a serva – e o Assistente Gonçalves esclareceu que a carga de pensamentos sombrios, emitidos pelos parentes encarnados, era a causa fundamental desse agravo de perturbação. Visto achar-se ainda muito fraco e sem ter acumulado força mental suficiente para desprender-se dos laços mais fortes do mundo, o pobre não tem resistido, como seria de desejar.

Enquanto o generoso Tobias acariciava a fronte do enfermo, a serviçal prosseguia esclarecendo:

– Hoje, muito cedo, ele se ausentou sem consentimento nosso, a correr desabaladamente. Gritava que lhe exigiam a presença no lar, que não podia esquecer a esposa e os filhos chorosos; que era crueldade retê-lo aqui, distante do lar. Lourenço e Hermes esforçaram-se por fazê-lo voltar ao leito, mas foi impossível. Deliberei, então, aplicar alguns passes de prostração. Subtrai-lhe as forças e a motilidade, em benefício dele mesmo.

– Fez muito bem – acentuou Tobias, pensativo -, vou pedir providências contra a atitude da família. É preciso que ela receba maior bagagem de preocupações, para que nos deixe o Ribeiro em paz. Fixei o doente procurando identificar-lhe a expressão íntima, verificando a legítima expressão de um dementado. Ele chamara Tobias como a criança que conhece o benfeitor, mas acusava profundo alheamento de quanto se dizia a seu respeito.

Notando-me a admiração, o novo orientador explicou:

– O pobrezinho permanece na fase de pesadelo, em que a alma pouco mais vê e ouve que as aflições próprias. O homem, meu caro, encontra na vida real o que amontoou para si mesmo. Nosso Ribeiro deixou-se empolgar por numerosas ilusões.

Eu quis indagar da origem dos seus padecimentos, conhecer-lhes a procedência e o histórico da situação; entretanto, recordei as criteriosas ponderações da mãe de Lísias, relativas à curiosidade, e calei. Tobias dirigiu ao enfermo generosas palavras de otimismo e esperança. Prometeu que iria providenciar recurso a melhoras, que mantivesse calma em benefício próprio e que não se aborrecesse por estar preso à cama. Ribeiro, muito trêmulo, rosto ceráceo, esboçou um sorriso muito triste e agradeceu com lágrimas.

Seguimos através de numerosas filas de camas bem cuidadas, sentindo a desagradável exalação ambiente, oriunda, como vim a saber mais tarde, das emanações mentais dos que ali se congregavam, com as dolorosas impressões da morte física e, muita vez, sob o império de baixos pensamentos.

– Reservam-se estas câmaras – explicou o companheiro bondosamente – apenas a entidades de natureza masculina.

– Tobias! Tobias… Estou morrendo à fome e sede! – bradava um estagiário.

– Socorro, irmão!… – gritava outro.

– Por amor de Deus!… Não suporto mais!… – exclamava ainda outro. Coração alanceado ante o sofrimento de tantas criaturas, não contive a interrogação penosa:

– Meu amigo, como é triste a reunião de tantos sofredores e torturados! Por que este quadro angustioso

Tobias respondeu sem se perturbar:

– Não devemos observar aqui somente dor e desolação. Lembre, meu irmão, que estes doentes estão atendidos, que já se retiraram do Umbral, onde tantas armadilhas aguardam os imprevidentes, descuidosos de si mesmos. Nestes pavilhões, pelo menos, já se preparam para o serviço regenerador. Quanto às lágrimas que vertem, recordemos que devem a si mesmos esses padecimentos. A vida do homem estará centralizada onde centralize ele o próprio coração.

E depois de uma pausa, em que parecia surdo a tantos clamores, acentuou:

– São contrabandistas na vida eterna.

– Como assim? – atalhei, interessado.

O interlocutor sorriu e respondeu em voz firme:

– Acreditavam que as mercadorias propriamente terrestres teriam o mesmo valor nos planos do Espírito. Supunham que o prazer criminoso, o poder do dinheiro, a revolta contra a lei e a imposição dos caprichos atravessariam as fronteiras do túmulo e vigorariam aqui também, oferecendo-lhes ensejos a disparates novos. Foram negociantes imprevidentes. Esqueceram de cambiar as posses materiais em créditos espirituais. Não aprenderam as mais simples operações de câmbio no mundo. Quando iam a Londres, trocavam contos de réis por libras esterlinas; entretanto, nem com a certeza matemática da morte carnal se animaram a adquirir os valores da espiritualidade. Agora… que fazer? Temos os milionários das sensações físicas transformados em mendigos da alma.

Realíssimo! Tobias não podia ser mais lógico. Meu novo instrutor, após distribuir conforto e esclarecimento a granel, conduziu-me a vasta câmara anexa, em forma de grande enfermaria, notificando:

– Vejamos alguns dos infelizes semimortos.

Narcisa, a servidora, acompanhava-nos, solícita. Abriu-se a porta e quase cambaleei ante a surpresa angustiosa. Trinta e dois homens de semblante patibular permaneciam inertes em leitos muito baixos, evidenciando apenas leves movimentos de respiração. Fazendo gesto significativo com o indicador, Tobias esclareceu:

– Estes sofredores padecem um sono mais pesado que outros de nossos irmãos ignorantes. Chamamos-lhes crentes negativos. Ao invés de aceitarem o Senhor, eram vassalos intransigentes do egoísmo; ao invés de crerem na vida, no movimento, no trabalho, admitiam somente o nada, a imobilidade e a vitória do crime. Converteram a experiência humana em constante preparação para um grande sono e, como não tinham qualquer idéia do bem, a serviço da coletividade, não há outro recurso senão dormirem longos anos, em pesadelos sinistros.

Não conseguia externar meu espanto. Muito cuidadoso, Tobias começou a aplicar passes de fortalecimento, sob meus olhos atônitos. Finda a operação nos dois primeiros, começaram ambos a expelir negra substância pela boca, espécie de vômito escuro e viscoso, com terríveis emanações cadavéricas.

– São fluidos venenosos que segregam – explicou Tobias, muito calmo. Narcisa fazia o possível por atender prontamente à tarefa de limpeza, mas debalde. Grande número deles deixava escapar a mesma substância negra e fétida. Foi então, que, instintivamente, me agarrei aos petrechos de higiene e lancei-me ao trabalho com ardor.

A servidora parecia contente com o auxílio humilde do novo irmão, ao passo que Tobias me dispensava olhares satisfeitos e agradecidos. O serviço continuou por todo o dia, custando-me abençoado suor, e nenhum amigo do mundo poderia avaliar a alegria sublime do médico que recomeçava a educação de si mesmo, na enfermagem rudimentar.

Fonte: Capítulo 27 – O TRABALHO ENFIM – do Livro NOSSO LAR, de Chico Xavier, pelo espírito André Luiz.

Em setembro de 2010, entra em cartaz no cinema o filme NOSSO LAR. Assista ao trailler.


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